O guerreiro no cavalo branco
Nascido na Capadócia, São Jorge chegou ao Brasil através dos portugueses. No Rio, cruzou com Ogum e hoje é padroeiro do Estado, reúne mais de um milhão de fiéis e é festejado com samba, feijoada e cerveja
Por Ana Flávia Pilar e Harumy Sato
23 de abril de 2021, 12h00

Imagem: Harumy Sato.
Em altares, medalhões, estampas de camisas ou adesivos de carros, a figura de São Jorge está sempre presente pelas ruas do Rio de Janeiro. Mas é no dia 23 de abril que Jorge sai para passear em seu cavalo branco, seguido por sua multidão. Vestidos com as roupas — vermelhas e brancas — e as armas de Jorge — sua espada e sua lança —, os devotos do santo guerreiro tomam as ruas do Rio, especialmente nos subúrbios. A festa do cavaleiro da Capadócia é celebrada em terras cariocas com o batuque do samba, feijoada e cerveja.
Leilson Barbosa da Silva, morador do bairro Jardim Leal, em Duque de Caxias, de 41 anos, sai de casa antes das cinco horas da manhã em todo dia de São Jorge. Ele vai à missa na Igreja de São Gonçalo Garcia e São Jorge, no Centro do Rio, rezar e agradecer. Depois, retorna para casa e finaliza os preparativos da festa que organiza em homenagem ao santo guerreiro desde 2006. A feijoada, aberta ao público, já é tradição e teve início com uma promessa feita a São Jorge: Leilson pediu ao santo que o ajudasse a construir sua casa para viver com a família e prometeu que faria a festa por sete anos.
O evento é realizado na quadra dele, a Quadra do Marmita, no bairro Jardim Leal, e antes da festa todos se reúnem para uma oração ao redor da imagem do santo, colocada em uma mesa com rosas e velas vermelhas. Nos primeiros anos, apenas Leilson e sua família participavam da oração, e a feijoada era preparada para cerca de 50 pessoas. Mesmo depois de ver o seu pedido realizado, ao fim dos sete anos, Leilson continuou a organizar a feijoada em agradecimento. “Com o passar dos anos, a notícia foi se espalhando, o pessoal foi gostando e a festa foi crescendo. Agora, a festa tem, em média, mil pessoas”, conta Marieliza Lopes da Silva, filha de Leilson. A entrada para o evento é franca, mas há cinco anos que os organizadores pedem um quilo de alimento como doação.

Leilson acendendo uma vela em frente à imagem de São Jorge. Imagem: Juuh Rabelo/Arquivo pessoal
JORGE É DA CAPADÓCIA!
A Capadócia é a região da Turquia considerada o segundo berço do cristianismo no mundo, atrás apenas de Belém, na Cisjordânia. Também é o lugar em que nasceu Jorge, hoje popularmente conhecido como o Santo Guerreiro.
Grande parte da memória de São Jorge foi destruída até o início do século IV, período da Antiguidade em que os cristãos foram perseguidos pelo Império Romano. Sobretudo pela ausência de registros, a Igreja Católica tentou suprimir o culto de santos com histórias muito fantasiosas por décadas, até que, no ano de 1969, as celebrações de São Jorge passaram a ser facultativas no Calendário Geral do Vaticano e sua memória passou a ser celebrada como festa litúrgica em algumas regiões. Somente em 2000, com o Papa João Paulo II, o santo voltou ao posto de figura de máxima importância na Igreja Católica.
São Jorge é o padroeiro de muitos locais, como o Estado do Rio de Janeiro, e países como Portugal, Alemanha, e Inglaterra. Em 2012, a União da Ilha do Governador fez um enredo sobre o país, na época das Olimpíadas de Londres. Um dos carros alegóricos foi sobre o santo padroeiro.
"O Reino Unido e seus heróis
Peguem as armas, diz a voz
De um santo guerreiro
Os bravos vão lutar cruzar fronteiras
Com sua fé estampada na bandeira"
De acordo a professora e pesquisadora do Departamento de História da UFF Georgina Silva dos Santos, o testemunho histórico mais antigo sobre o santo foi escrito por um dos discípulos do “mestre Jorge” da Capadócia. Em uma palestra, a professora diz que São Jorge teria sido torturado por ordens do imperador romano Graciano depois de confessar sua fé em Cristo e rejeitar a realização de sacrifícios para os deuses pagãos. O guerreiro calçou sandálias com pregos pontiagudos, foi atacado por aves de rapina e ferido por uma roda repleta de espadas, exatamente como Prometeu, o mais sábio dos titãs da mitologia grega.
Na versão mais recente sobre a vida do santo, de 916, São Jorge teria desobedecido ao Imperador Diocleciano e foi preso por negar adoração aos deuses pagãos. Ele operou tantos milagres depois do cárcere que até os soldados que o torturavam foram convertidos à fé cristã.
Apesar de relevantes, nenhuma dessas histórias está por trás da imagem dominante sobre quem foi São Jorge. No imaginário popular, “São Jorge foi um santo muito milagroso: ele venceu a demanda. É o nosso padroeiro e muito homenageado por todos. Foi um soldado romano, lutou contra o dragão e conseguiu salvar muita gente”. A frase é da mãe de santo Márcia Montenegro, 69 anos, moradora de Irajá, Zona Norte do Rio de Janeiro, mas poderia ser de muitos outros devotos cariocas.
A figura do santo é cercada por muitas lendas e a mais popular é a luta contra o dragão, mas até mesmo esse mito tem diferentes versões. Em uma delas, o cavaleiro Jorge lutou contra o dragão na Lua e as crateras na sua superfície são marcas da batalha, como canta Seu Jorge em Alma de Guerreiro: “Olhando para o céu eu sou capaz de ver/Salve Jorge na Lua.” A música foi trilha de abertura da novela Salve Jorge (2012), da Rede Globo.
Segundo o pesquisador e escritor Luiz Antônio Simas, a versão mais famosa da vitória do santo contra o dragão está presente no livro Legenda Áurea, publicado no final da década de 1960. Nela, Jorge da Capadócia enfrentou o dragão, que vivia além dos muros de uma cidade, para salvar uma princesa. Seu único pedido como agradecimento foi que a população aceitasse o Evangelho e que o rei zelasse pelos pobres.
Mas, no livro O corpo encantado das ruas, Simas mostra uma visão diferente sobre a associação do dragão ao santo católico. O autor fala que é possível que alguns dos atributos de Sigurd, o caçador nórdico de dragões, tenham sido atrelados ao santo cristão. “O dragão da cobiça e da traição, combatido por Sigurd, virou, nas encruzilhadas em que a vida acontece, o dragão da falsa idolatria combatido por Jorge da Capadócia.” Simas chama esse tipo de associação — fenômeno mais conhecido como sincretismo — de "cruzo".
SINCRETIZADO NA FÉ
O guerreiro da Capadócia e seu cavalo branco chegaram ao Brasil junto com os portugueses — São Jorge é padroeiro de Portugal, onde a devoção ao santo é muito forte. Nas encruzilhadas baianas, São Jorge cruzou com Oxóssi e, pelas ruas do Rio, a espada de Jorge se fundiu com a lança de Ogum.
"Eu sou descendente Zulú
Sou um soldado de Ogum
Devoto dessa imensa legião de Jorge
Eu sincretizado na fé
Sou carregado de axé
E protegido por um cavaleiro nobre
Sim vou na igreja festejar meu protetor
E agradecer por eu ser mais um vencedor
Nas lutas nas batalhas
Sim vou no terreiro pra bater o meu tambor
Bato cabeça firmo ponto sim senhor
Eu canto pra Ogum"
Existem muitas semelhanças entre o santo e o orixá. Na umbanda e no candomblé, Ogum é o orixá guerreiro, corajoso e destemido, sinônimo de lei e ordem. O sincretismo religioso no Brasil foi uma das muitas formas de resistência africana durante o período colonial brasileiro. Como qualquer manifestação religiosa contrária à fé cristã era proibida, os orixás assumiram as imagens dos santos católicos nos cultos dos africanos escravizados.
Durante a segunda metade do século XX, após o fim da escravidão, os planos de urbanização do Rio de Janeiro colidiram com a população mais pobre. Os cortiços e vilas onde essa gente morava eram vistos como um obstáculo para a expansão da cidade. Ainda assim, o Rio dependia deles. Luiz Antônio Simas, em um artigo para a piauí, afirma que ao mesmo tempo em que esses indivíduos “maculavam” o sonho da Paris dos trópicos, eles o sustentavam, porque eram os únicos capazes de “realizar o trabalho braçal que as elites não cogitavam fazer”.
É em nome do “Rio imaculado” que o direito à cidade foi tirado dessas pessoas. Elas são confinadas “em favelas, subúrbios, vagões lotados e cadeias”. Mas o confinamento desta população vai além da natureza geográfica: sua cultura sofre com a mesma desqualificação. Daí a destruição de espaços como a Praça Onze e a criminalização do samba, da capoeira e da macumba.
Nesse contexto, ocorreu o cruzo entre muitos orixás e santos da Igreja Católica, que persiste até hoje. Leilson e sua família, organizadores da feijoada anual em Duque de Caxias, são umbandistas e devotos de São Jorge, e eles não são um caso isolado.
Também na Baixada Fluminense, em São João de Meriti, mora Marilene Gomes de Araújo Miguel, de 56 anos. Nascida em Guarabira, na Paraíba, Marilene veio para São João aos 4 anos de idade. Na sala de casa, se destacam uma cadeira de balanço, a foto do Papa Francisco perto da televisão e, o mais importante, o quadro de São Jorge pendurado na parede. Ela conta que o quadro foi a primeira coisa que o marido, também devoto do santo, comprou para a casa, assim que eles se mudaram.

Marilene em frente ao quadro de São Jorge. Imagem: Harumy Sato
Ela se declara “meio espírita, meio católica” e diz que já pediu muitas coisas ao santo, inclusive ajuda para tirar a carteira de habilitação. “Eu tinha reprovado na prova prática seis vezes, mas não desisti. Na sétima, eu pedi ajuda a Nossa Senhora e a São Jorge e passei”, contou. Mas esse não foi o único pedido que o santo atendeu.
Em 1992, Marilene estava em sua terceira gestação. No primeiro pré-natal, soube que seria uma gravidez de risco. “Eu descobri que era diabética ali”, lembra, por isso teve que tomar remédios e mudar a alimentação. “O médico me perguntou se eu era maluca por engravidar assim.”
O restante da gestação correu bem, até que Marilene passou mal no dia 22 de abril de 1993, véspera do dia de São Jorge. Quando chegou na Maternidade Menino Jesus, em São João de Meriti, ouviu do médico que ainda não era a hora de sua filha nascer. Desconfiada do diagnóstico e sentindo muita dor, Marilene decidiu ir a outra maternidade — também com nome de santo, a Nossa Senhora da Glória — em Belford Roxo, cidade vizinha, onde foi atendida rapidamente.
"Amanhã é dia de São Jorge: se a senhora acredita nele, peça proteção para você e sua filha." Essa é a frase que Marilene lembra de ter ouvido de um funcionário do hospital assim que deu entrada lá, quando percebeu que não seria uma tarefa fácil para ela. E foi isso que ela fez. Sua filha nasceu em 22 de abril, por volta do meio-dia, de parto natural. Só que o bebê era muito grande e Marilene perdeu bastante sangue.
Na enfermaria, depois de dar a luz, Marilene ouviu a colega de quarto chamá-la. Ao olhar para o chão, coberto de sangue, descobriu que estava com hemorragia, e nem havia percebido. Teve que ficar em observação e só pôde conhecer sua filha na noite do dia seguinte, justamente o dia de São Jorge. Era uma menina de 3.2 kg e olhos castanhos. O pai da criança queria dar o nome de Jorgina ou Jorgete, por conta das preces ao santo e da data em que ela nasceu, mas Marilene achou “muito feio” e, além disso, ela já havia decidido o nome de sua filha: Mariana.
PROTEGIDOS POR UM CAVALEIRO NOBRE
Quando Mariana nasceu, em 1993, o dia de São Jorge ainda não era feriado no Rio. A data só passou a ser feriado municipal na capital em 2001, mesmo sem ser o padroeiro (que é São Sebastião), e foi apenas no governo de Sérgio Cabral — que, por exemplo, teve a sua renovação de votos com a então primeira-dama Adriana Ancelmo realizada pelo padre Marcelino Modelski, à época, à frente da Igreja de São Jorge, em Quintino — que o dia 23 de abril se tornou feriado estadual através do decreto número 5198/08, de 05 de março de 2008. Já em 2019, o santo guerreiro passou a ser considerado padroeiro estadual, ao lado de São Sebastião.
Os moradores de Quintino, bairro na Zona Norte da cidade do Rio, ficaram especialmente felizes com a criação do feriado. O bairro reúne cerca de um milhão de fiéis para as missas na Igreja Matriz de São Jorge e sua tradicional festa. A devoção por São Jorge está presente em Quintino muito antes da construção da paróquia. Segundo o site da igreja, antigas moradoras do bairro se reuniam às terças-feiras para rezar o terço na varanda de uma das casas da Rua Clarimundo de Melo, principal via do bairro. Um senhor português viu a reza das mulheres e trouxe, em uma de suas viagens a Portugal, uma pequena imagem do santo para presenteá-las.

Estátua de São Jorge no interior da paróquia, em Quintino. Imagem: João Vitor Costa
Em 2020, por conta da pandemia do novo coronavírus, a festa foi adiada, e a legião vestida de vermelho e branco não pôde celebrar o dia de São Jorge em Quintino. Como a disseminação do vírus não foi contida, a festa também não vai acontecer em 2021. O mesmo ocorreu com a feijoada da família de Leilson: “Nossa última festa foi em 2019, no ano passado não fizemos, mas como somos devotos, a gente fez a feijoada aqui em casa mesmo, só para minha família”, contou sua filha. A família de devotos assistiu à missa em casa, através do Youtube em 2020, e pretende fazer a mesma coisa este ano. “Não deixamos passar em branco nunca.”
A devoção a São Jorge ganhou, no Rio, uma nova cara. Padroeiro de muitas escolas de samba, a figura do santo já desfilou muitas vezes na Sapucaí. Fora da Avenida, o Império Serrano faz, anualmente, uma carreata em homenagem ao seu padroeiro, saindo da quadra da escola, em Madureira, passando pela igreja em Quintino, percorrendo bairros da Zona Norte como Engenho de Dentro, Abolição, Pilares, Ramos (sede da Imperatriz Leopoldinense), Irajá e retornando a Madureira, passando no Morro da Serrinha antes de retornar à sede.
Em 2017, a Estação Primeira de Mangueira apresentou o enredo “Só com a ajuda do santo”, que explorou muito os sincretismos entre santos católicos e orixás, e a figura de São Jorge apareceu diversas vezes durante o desfile. Um ano antes, a Estácio de Sá apresentou o enredo “Salve Jorge, o Santo Guerreiro”, inteiramente dedicado ao cavaleiro da Capadócia.
Além de abençoar escolas de samba, a imagem de Jorge em seu cavalo branco é vista em lugares pouco usuais: balcões de bar, janelas dos ônibus e bancas de aposta do jogo do bicho — a aposta no grupo do cavalo no dia 23 de abril tem valor reduzido, caso o jogador acerte, ele ganha apenas 10% do valor normal. Isso foi feito para evitar que a banca “quebre” caso tenha um grande número de acertos.
Mas o padre Dirceu, pároco responsável pela Igreja de São Jorge, em Quintino, parece entender bem essa relação peculiar dos devotos com o santo. “Eu sempre gosto de dizer para os outros padres: São Jorge foi um santo que foi caçado”, declarou, lembrando da retirada das celebrações do santo do calendário oficial do Vaticano. Ele fala que São Jorge é uma figura de fácil identificação, porque a luta do santo, atualmente, não é contra o dragão em si, mas é contra o que aflige a sociedade. “Todo mundo se identifica com São Jorge, que não ficou só dentro da igreja não é só dos católicos. O importante é se identificarem com ele para vencer o mal que está aí.”