O mestre sala dos mares
Joao Cândido Felisberto, herói da Revolta da Chibata, nasceu há 141 anos, no dia 24 de junho de 1880. 111 anos após o levante e 52 anos após a morte do "mestre sala dos mares", sua família e ativistas seguem na luta pelo reconhecimento de sua memória.
Por Harumy Sato
24 de junho de 2021, 15h30

Estátua de Joãio Cândido na Praça XV.
Imagem: Harumy Sato.
Em 22 de novembro de 1910, navios de guerra apontaram seus canhões para o litoral carioca. O barulho dos disparos deixou os moradores do Rio de Janeiro, então capital da República, atônitos. Aterrorizados ao saberem do levante que acontecia no cais, muitos fugiram para longe do alcance da esquadra, deixando os passeios públicos e cafés parisienses da Avenida Central vazios. Comandando o encouraçado Minas Gerais, João Cândido Felisberto transmitiu o recado ao presidente: ou as reivindicações dos marinheiros eram atendidas, ou a cidade seria bombardeada. Era o início de um dos capítulos mais importantes da história recente do Brasil: a Revolta da Chibata.
João Cândido — apelidado pela imprensa carioca de Almirante Negro — e seus companheiros pediam o fim dos castigos físicos na Marinha brasileira, que continuavam existindo, mesmo após 20 anos da proclamação da jovem República. O motim foi violentamente reprimido, e João Cândido encarcerado. Ele sofreu tentativas de assassinato e, após a anistia, foi expulso da corporação — o que não acabou com a perseguição promovida por ela. Cândido passou a trabalhar como pescador e viveu até o fim de sua vida em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, onde atualmente está sendo construído um museu em sua memória.
Ele foi imortalizado na música O Mestre Sala dos Mares (1975), de Aldir Blanc e João Bosco, cantada por Elis Regina. Hoje, 111 anos após a revolta e 52 anos após sua morte, seu legado na luta pelos Direitos Humanos e pela Igualdade Racial vem sendo resgatado. Em novembro de 2019, João Cândido passou a integrar o Livro de Heróis do Estado do Rio de Janeiro e, no último dia 2 de junho, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou, em discussão única, o projeto de lei 3.863/21, que prevê a realização de atividades para divulgar e valorizar a memória do marinheiro em escolas públicas e privadas. O "mestre-sala dos mares" tem por monumento, hoje, mais do que "as pedras pisadas do cais".
O ALMIRANTE NEGRO
João Cândido Felisberto nasceu no Rio Grande do Sul, a cerca de 170 quilômetros de Porto Alegre, no dia 24 de junho de 1880 — oito anos após a Lei do Ventre Livre (1871) e oito anos antes da Abolição da Escravidão (1888). Seu pai, João Felisberto, era alforriado, e sua mãe, Inácia Cândido Felisberto, ainda cativa. Em 1895, aos 14 anos, ingressou na Marinha de Guerra.
Como marinheiro, viajou pelo Brasil, Estados Unidos e Europa e esteve na disputa contra a Bolívia (1899 - 1903) pelo território do Acre. Era respeitado e disciplinado e tinha sonhos patrióticos com a Marinha brasileira, como mostra um trecho de seu diário, publicado em 1912 pelo jornal Gazeta de Notícias, com edição atribuída a João do Rio. Nele, Cândido descreveu o que sentiu ao ver embarcações da Marinha dos Estados Unidos navegarem pela Guanabara:
“De bordo do meu navio, fremido de alegria, eu vi a marcha das unidades americanas. Não invejei os marinheiros da grande nação porque era brasileiro. Mas não me recordo mesmo se cheguei a sentir a diferença entre nós e eles, os guiadores daquelas naus formidáveis. No momento em que o Connecticut avançava, encabeçando a linha irrepreensível da esquadra a mover-se, experimentei apenas a vontade de ver o meu querido e nobre país com igual grandeza e glória que a dos que viajavam às ordens do almirante Evans.
Possível? Eu não sabia dizer a mim mesmo, naquela hora, mas bem o queria o meu patriotismo.”
Em 1909, Cândido viu sua vontade tornar-se realidade. Ele foi enviado à Inglaterra para fazer parte da tripulação do Minas Gerais — que, meses depois, estaria sob seu comando na Revolta da Chibata —, um navio de guerra que estava sendo construído pelos ingleses sob encomenda da Marinha brasileira. Na viagem de volta, ao atracar nos Estados Unidos, João Cândido pode recompensar o que sentira no Rio. Ele escreve em seu diário:
“Quando chegamos em Norfolk, o couraçado americano já estava pronto para partir. Tive, porém, ocasião de ver que o tempo que passamos nesse porto fora suficiente para que eu sentisse nos americanos a mesma admiração pelo Minas que eu tive pelo Connecticut e demais navios da esquadra do almirante Evans. Ah! Estava bem pago! O meu coração de marujo do Brasil sentiu-se feliz, muito feliz!..”
Entretanto, a felicidade que sentiu como marujo brasileiro durou poucos meses. Ao retornar ao Brasil, em 1910, tentou marcar um encontro com o então presidente da República, Nilo Peçanha, para negociar o fim das chibatadas, mas não obteve sucesso. Ao ver suas reclamações justas sendo ignoradas, os marinheiros decidiram se organizar para tomar medidas mais drásticas. Eles passaram a se reunir escondidos das autoridades policiais para criar um plano de ação.
A Revolta da Chibata foi um movimento pensado, arquitetado por cerca de um ano, como o historiador Álvaro do Nascimento, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, conta em entrevista a Ricardo Westin para o El País. “Os marinheiros, na realidade, demonstraram capacidade e inteligência na Revolta da Chibata. Eles tiveram consciência de classe, conseguiram criar um movimento organizado, planejaram o motim durante pelo menos um ano e, para agir, escolheram o preciso momento em que o país e o mundo político estavam mais fragilizados”, explica.
Ele está se referindo à crise política que o Brasil vivia naquele momento, causada pela Campanha Civilista feita pelo senador Ruy Barbosa nas eleições de 1910. A Primeira República, que estava acostumada com vitórias fáceis e sem oposição por conta da Política dos Governadores, ficou instável com a disputa entre o senador e o marechal Hermes da Fonseca. Ruy Barbosa perdeu as eleições, mas deixou um clima de insegurança no cenário político nacional.
Em 15 de novembro do mesmo ano, Hermes da Fonseca seria empossado como oitavo presidente do Brasil. De acordo com o diário de João Cândido, a vida a bordo nesse período “tinha-se tornado impossível”. Em um único dia, 42 marujos da tripulação do Minas foram chibatados. E, enquanto a capital da República se preparava para a posse, os marinheiros revoltosos se reuniram em assembleia pela primeira vez para planejar o motim, no dia 12 de novembro. Na assembleia, decidiram quais seriam suas reivindicações: o fim da chibata e da palmatória e melhores condições de trabalho. Foi estabelecida também a data para o levante: 14 de novembro. Um dia antes da posse do presidente, a revolta se instalaria a bordo do Minas Gerais.
Por complicações, o levante não ocorreu na data programada inicialmente. Os marujos remarcaram para o dia seguinte, 15 de novembro, logo após a parada que ocorreria em ocasião do novo presidente, mas um temporal atrapalhou seus planos. Combinaram, então, de se rebelar no dia 19, após uma passeata e, caso nessa data também não fosse possível, a revolta explodiria no dia 22 de novembro, como ocorreu.
Na noite do dia 22, quatro navios da Marinha brasileira foram tomados pelos marujos e seus canhões apontados para a cidade. No comando do São Paulo, estava Manuel Gregório do Nascimento; no Deodoro, André Avelino; no Bahia, Francisco Dias Martins e, comandando o Minas Gerais, João Cândido Felisberto. Quatro tiros de alerta foram disparados em direção à costa, que atingiram o Morro do Castelo, matando três crianças.
A Revolta foi amplamente noticiada por jornais brasileiros e internacionais, como o The New York Times. Nos jornais cariocas, muitas matérias sobre o levante traziam fotos e charges de João Cândido. O apelido dado a ele pelos jornais do Rio, Almirante Negro, era, ao mesmo tempo, uma mostra de admiração por parte dos jornais oposicionistas — por ele conseguir comandar o gigantesco Minas Gerais sem ter passado pela Escola Naval —, mas também uma ofensa racista, forma de ridicularizá-lo por parte dos jornais governistas, como um “negro” que “brinca” de ser almirante, posição que ele jamais poderia ocupar dentro da corporação. Apesar de, à época, 90% da Marinha ser formada por negros, filhos e netos de ex-escravizados, os cargos de comando eram ocupados apenas por brancos herdeiros da elite colonial.

Representação racista dos marinheiros revoltosos no jornal O Malho. O Malho, 17 de dezembro de 1910.
Os marinheiros foram anistiados quatro dias depois, no dia 26 de novembro. O Senado, influenciado por Ruy Barbosa, principal oposicionista a Hermes da Fonseca, aprovou a anistia por unanimidade e o presidente foi obrigado a sancioná-la. Na tarde do dia 26, o comandante Pereira Leite esteve a bordo do Minas para informar as condições da anistia e ordenar que os 2300 marujos entregassem as embarcações. Às 6 horas e 50 minutos, a esquadra içou a bandeira branca e disparou 21 tiros de canhão como salva de gala.
Mas o sentimento de revolta não sumiu. Um mês depois, uma nova rebelião eclodiu na Ilha das Cobras, da qual João Cândido não participou. Após o levante ser contido, alguns marinheiros envolvidos foram levados a masmorras e outros à Amazônia, para trabalho forçado na produção de borracha. Eles foram transportados no porão do Satélite, o “navio-fantasma”. Catorze marinheiros sequer chegaram ao destino, foram fuzilados e seus corpos foram jogados ao mar.

Manchete noticiando o fim da Revolta, com foto de João Cândido em destaque à esquerda. Correio da Manhã, 27 de novembro de 1910.
Apesar de não ter participação no segundo levante, Cândido foi preso e levado para uma solitária na Ilha das Cobras — que dividiu com outros 15 companheiros. Os prisioneiros ficavam amontoados nas celas, completamente despidos, sem água, comida e expostos ao sol. Passados quatro dias, onze prisioneiros haviam morrido. Cândido escreve em seu diário:
“Nesse mesmo dia eu pedi à sentinela, que se achava além, separada de nós por duas portas de madeira e de uma grade, para avisar ao carcereiro que já havia alguns mortos. Vindo esse acompanhado de dois outros presos, arremessou por baixo das portas grande quantidade de ácido fênico, creolina e cal.
Indagou depois se o João Cândido já tinha morrido, tendo resposta negativa. Então ele declarou que estávamos todos ali para morrer e que não conversássemos muito, senão ele mandava botar uma lata de querosene e atear fogo.”
O martírio de João Cândido durou dois anos. Além do cárcere, ele foi enviado ao Hospício Nacional, na Urca, onde atualmente fica o Campus Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Deixou o hospício em pouco menos de dois meses, após ser comprovado que “de louco, não tinha nada”, segundo o diretor do local, Juliano Moreira. Retornou à Ilha das Cobras, de onde saiu apenas no dia 30 de dezembro de 1912.
Foi expulso da Marinha, o que não acabou com as perseguições sofridas por ela. Tentou trabalhar para a Marinha Mercante, mas não teve sucesso. Acabou empregado como vendedor no Mercado de Peixes da Praça XV, onde conheceu o jornalista Edmar Morel, que seria o primeiro a resgatar suas memórias da revolta. João Cândido se mudou para São João de Meriti, na Baixada Fluminense, onde viveu até o fim de sua vida. Casou-se três vezes e teve onze filhos. Faleceu de câncer no intestino em 1969, aos 89 anos, no Hospital Getúlio Vargas.
GLÓRIA A TODAS AS LUTAS INGLÓRIAS
E foi carregando cestos de peixe na Praça XV que João Cândido conheceu Edmar Morel. Em 1937, já com 57 anos, foi reconhecido pelo jovem jornalista, então repórter do O Globo. Eles se tornaram amigos e Morel decidiu escrever uma biografia sobre a vida do marinheiro e seus feitos na rebelião. A Revolta da Chibata, seu livro publicado em 1989, que deu nome ao levante de marinheiros, conta as memórias de Cândido e as barbaridades que foram excluídas da história oficial. A publicação do livro ressuscitou a figura de João Cândido na memória popular. Durante o período da ditadura militar (1964-1985), os exemplares de A Revolta da Chibata foram recolhidos das prateleiras das livrarias.
Essa não foi a única vez que a ditadura militar censurou conteúdos sobre João Cândido. Em 1975, quando Aldir Blanc e João Bosco escreveram O Mestre-sala dos Mares, os censores implicaram com a letra. Para fugir da censura, mudaram o título da canção, que antes era “Almirante negro” e trocaram palavras como “almirante” e “marinheiro” por “navegante” e “feiticeiro”. Mas o problema maior não eram esses termos, como Blanc contou em uma entrevista. O incômodo era com “o negro isso, negro aquilo” que aparecia na letra da canção.
Dez anos depois, a música de Aldir Blanc e João Bosco foi homenageada pela escola de samba União da Ilha do Governador. A escola desfilou o enredo "Um herói, um Enredo, Uma canção" em 1985, mas, antes disso, os diretores da agremiação foram convocados ao 1° Distrito Naval para dar explicações. O fundador da escola, Orphilo Bastos, disse ao almirante com quem conversou: "O enredo não tem nada de subversivo. Isso é coisa de sambista mesmo. A gente só tá contando uma lenda.” A Ilha não agradou aos jurados nesse ano e ficou em 12° lugar.
Falar de João Cândido e de seus feitos na Revolta da Chibata é, por si só, um ato de subversão. É por isso que há treze anos a comunidade negra de São João de Meriti luta pela construção do Museu Marinheiro João Cândido, como conta o Frei Athaylton Jorge Monteiro Belo, 61 anos, mais conhecido como Frei Tatá. Membro da Ordem dos Frades Menores (OFM) e da Pastoral Afro Brasileira, o padre está à frente do projeto, apesar de não ter mais um cargo oficial na prefeitura do município.
O frei diz que o projeto do museu passou a fazer parte da agenda do poder Executivo do município em 2009, na gestão de Sandro Matos (PSD), que hoje responde por irregularidades ocorridas durante seus dois mandatos como prefeito da cidade. Atualmente, o museu está localizado, de forma provisória, no Edifício Antares, ao lado da sede da prefeitura de São João de Meriti. O que já existe de acervo divide o espaço com o Centro de Referência dos Direitos Humanos.

Frei Tatá em frente a imagens expostas no espaço provisório do museu. Imagem: Harumy Sato.
Em meio a fotos, painéis e estátuas que lembram momentos da vida de João Cândido, Frei Athaylton conta que pessoas que sonhavam em ver o projeto sair do papel não tiveram essa oportunidade, como Zeelândia, filha de João Cândido, que faleceu em 2006. “Ela tinha o mesmo sonho de ver o museu. A gente acredita que de algum lugar da eternidade ela está vendo, mas uma coisa é você estar vendo lá, após a vida. E é uma preocupação do Seu Candinho, porque ele está com 82 anos. De vez em quando ele fala isso”, explica.
Seu Candinho é como Adalberto Cândido, de 82 anos, é conhecido. Único filho vivo de João Cândido, é o caçula de 11 irmãos e sonha em ver a construção do museu em memória de seu pai. Em novembro de 2019, ele se emocionou com a inclusão do nome de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas do Rio de Janeiro. O projeto de lei é de autoria de André Ceciliano e Waldeck Carneiro, ambos deputados do PT, e foi oficializado por Wilson Witzel, ex-governador, cuja gestão no governo do Estado foi marcada por recordes de assassinatos por policiais — onde 86% das mortes causadas pela polícia são de pessoas negras. Em dezembro do mesmo ano, o marinheiro foi declarado Herói Municipal em São João de Meriti.
Em Brasília, o deputado Chico D’Angelo (PDT-RJ) propôs a inclusão de João Cândido no Livro de Heróis da Pátria, mas o projeto esbarrou na família Bolsonaro. O PL foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, mas Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) solicitou à Câmara que o projeto passasse pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, da qual é presidente. Rodrigo Maia, então presidente da Câmara, concordou. João Cândido é a primeira pessoa, civil ou militar, a ter a inclusão de seu nome no Livro de Heróis da Pátria tratada como assunto de Defesa Nacional.
Para a Marinha do Brasil, não há heroísmo nos feitos de João Cândido. Em 2008, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), inaugurou uma estátua do líder da Revolta da Chibata na Praça XV, palco do acontecimento. Entretanto, a solenidade ocorreu sem representantes da Marinha e, na época, em resposta à Folha, a corporação afirmou não reconhecer "heroísmo nas ações daquele movimento. Entretanto, nada tem a opor à colocação da estátua, desde que haja o cuidado de evitar inserções ofensivas à Força e às vítimas dos amotinados". Antes de ser inaugurada, a estátua ficou anos no Museu da República devido a complicações com a Marinha, até a corporação autorizar a colocação da estátua, que “não podia ficar nem perto, nem ‘olhando’ para a Escola Naval, localizada nas proximidades”.

Estátua de João Cândido na Praça XV de frente para a Baía de Guanabara, palco da Revolta da Chibata. Imagem: Harumy Sato.
Foi buscando ressaltar as lutas inglórias e os heróis populares que a Companhia Cerne criou a peça Turmalina 18-50. O título faz referência ao último endereço no qual João Cândido morou: Rua Turmalina, lote 18, quadra 50, em Coelho da Rocha, São João de Meriti. O espetáculo refaz os caminhos percorridos pelo Almirante Negro como forma de celebrar sua história.
Em 2019, completou-se o cinquentenário da morte de Cândido. Vinícius Baião Vieira, de 37 anos, autor e diretor do espetáculo, viu nessa data uma oportunidade para resgatar a memória do marinheiro. “A gente achou que era uma uma data importante para falar de São João a partir de João Cândido, que é a figura mais importante que já passou por essas terras. Ele morou mais de quarenta anos aqui e, se a gente perguntar na rua, nem sabem que morou aqui ou não sabe nem quem é”. Nascido e criado em São João de Meriti, Baião, além de dramaturgo e diretor de teatro, é professor de Língua Portuguesa na rede municipal. Ele fala que é preciso trazer o simbolismo do legado do marinheiro para a realidade do município, especialmente na educação: “não dá para o currículo da grade de História da rede municipal não ter um carinho especial pelo João Cândido.”
A Alerj aprovou, no dia 2 de junho, uma medida que torna obrigatória nas escolas a realização de atividades sobre João Cândido e a Revolta da Chibata. O projeto também é de autoria de Waldeck Carneiro e André Ceciliano e foi aprovado em discussão única. As escolas públicas e privadas do Rio de Janeiro deverão desenvolver atividades para divulgar e valorizar a memória do herói estadual, como fazem com outros heróis da luta pela igualdade racial, como Zumbi dos Palmares.
Frei Tatá compara a luta de João Cândido com a de Zumbi. “Eu acho que a gente sempre falou isso: João Cândido é o Zumbi do século XX se a gente compreender que, no século XVI, Zumbi enfrentou uma força real, uma força institucional, ele enfrentou a força de Portugal, Não era só um problema de sobrevivência do quilombo, era de um projeto”, declarou. O projeto a qual ele se refere é o racismo que estrutura a sociedade brasileira e suas instituições.
Zumbi, uma das figuras mais importantes da história do Brasil, também tem um monumento em sua homenagem, no local onde ficava a antiga Praça Onze. As estátuas de Zumbi e de João Cândido são uns dos poucos monumentos erguidos em homenagem a personalidades negras no Centro do Rio, em meio a tantos marechais e almirantes com “sangue batido e pisado” nas mãos que foram emoldurados em cima de seus cavalos. Para heróis como eles, de lutas inglórias, só sobram as pedras pisadas do cais.
AS PEDRAS PISADAS
DO CAIS
Pensando nesse problema, surgiu o projeto de arte urbana Negro Muro. Pedro Gomes, de 35 anos, que prefere ser chamado de Pedro Rajão, é um dos idealizadores do projeto. Rajão, junto com o grafiteiro Cazé, ergue monumentos a personalidades negras através da arte urbana. Eles buscam muros de locais que tenham uma relação com a vida do personagem. Em fevereiro deste ano, pintaram um painel em homenagem a João Cândido. “A gente pensou em fazer o mural ali na Região Portuária, por motivos óbvios, mas no intuito de descentralizar, escolhemos pintar o muro da casa da família, onde ele morou, em São João de Meriti.”

Descendentes de João Cândido posam em frente à pintura no muro da casa da família.

Adalberto Cândido, único filho vivo de João Cândido, posa em frente à pintura de seu pai.

Quarta parte da pintura feita por Cazé no muro da casa.

Descendentes de João Cândido posam em frente à pintura no muro da casa da família.
Fotos da pintura feita por Cazé no muro da casa da família de João Cândido, retiradas do Instagram do Negro Muro. Imagens: Marcos Lamoreux/Reprodução.
O Negro Muro entrou em contato com Frei Tatá e outras pessoas ligadas à memória de João Cândido para a realização da pintura. Segundo Rajão, o frei viu no evento uma oportunidade para voltar os holofotes para a construção do Museu Marinheiro João Cândido. “É um processo que já tem treze anos. E, até hoje, o museu tá na ruína. As obras do entorno foram prontas, fizeram quadra poliesportiva, equipamentos de exercício para idoso, mas o museu em si, que é a estrutura da Casa do Embaixador, ainda está realmente nas ruínas”, explica.
Rajão conta que o processo para construção do mural foi emocionante. Após a finalização da pintura, a prefeitura do município visitou a rua, melhorou o asfalto e trocou as lâmpadas do poste que fica em frente à casa. No mesmo mês, a Alerj inaugurou uma placa na fachada da casa, que diz que ali morou João Cândido, herói municipal e líder da Revolta da Chibata. Ele diz que não consegue mensurar o impacto da arte nas pessoas, mas que o papel do grafite é despertar sentimentos. ”Eu acho que a arte pública, ela tem esse papel: de despertar nas pessoas curiosidades, emoção, despertar até incômodo às vezes, mas mexer em alguma coisa ali por dentro. E esse projeto, ele traz a relação geográfica e histórica do personagem com o local. Acho que isso cria também um sentimento de pertencimento daquela comunidade ali com o local, de saber que João Cândido morou ali, que Moacir Santos morou aqui. São várias as possibilidades de como a arte toca cada um.”
Recentemente, ele recebeu a notícia de que uma professora do Colégio Pedro II Campus Tijuca havia feito uma atividade com seus alunos com base em pinturas do Negro Muro. As crianças escolheram alguns dos grafites e fizeram releituras. “Isso é emocionante demais, isso faz tudo fazer sentido.”

Desenho feito por estudante do Colégio Pedro II - Campus Tijuca I representando João Cândido.

Desenho feito por estudante do Colégio Pedro II - Campus Tijuca I representando João Cândido.

Desenho feito por estudante do Colégio Pedro II - Campus Tijuca I representando João Cândido.
Fotos dos desenhos de João Cândido feito pelos estudantes. Imagens retiradas do Instagram da professora Marcia/ Reprodução.
O Negro Muro já pintou Pixinguinha, Luiz Gama, Elza Soares e muitas outras personalidades negras pelos muros do Rio de Janeiro. Agora, estão com uma campanha de arrecadação de fundos para concluir um muro do goleiro Barbosa em São Januário. Para saber mais e apoiar o projeto, visite sua página no Instagram e a campanha na Benfeitoria.